terça-feira, 17 de abril de 2018

Fiar o tempo, um romance de Luanda Julião


Fiar o tempo é um romance que narra uma relação conturbada e ausente entre pai e filha, atravessando dilemas da juventude atual  e conduz os leitores a questões universais como o tempo e a memória, a beleza e o amor, a morte e a criação artística, questões essas que são atravessadas por temas tangentes aos jovens em nossa sociedade atual, como o imediatismo, o consumismo exacerbado e o niilismo. Dessa maneira, somos convidados a atravessar as anotações, os aforismos, os rascunhos do livro de Júlia e o luto de Antony recriando um passado que se debruça sobre o presente.

Antony tem uma filha, Júlia, a qual ele fica mais de vinte anos sem conhecer. Quando Antony finalmente decide se aproximar da filha e revelar sua verdadeira identidade, um acidente de carro acaba ceifando a vida dela e das suas outras três amigas: Malu, Lola e Milla, personagens que estão conectadas ao enredo e que se tornam personagens de Júlia e Antony.

Antony busca desenfreadamente reconstruir a memória de um passado ausente, remendando pedaços, tecendo fios soltos das passagens e memórias tecidos pelo livro inacabado de Júlia. Como o fio de Ariadne, que guia Teseu no labirinto de Creta, os relatos de Júlia são a linha que guia Antony em sua dívida com o passado.


"O que é a memória? Penso que é como um novelo único e contínuo, enredado dentro de nós, que emerge à consciência em fragmentos, em variados graus, sendo essa emersão às vezes espontânea, às vezes uma resposta a um chamado da consciência. Fiar o tempo com as palavras é como costurar um traje de gala com retalhos ou tecidos gastos. Esse livro é como uma colcha de retalhos: tecido com os fios da memória alargada, bordado com o novelo do passado, distendido pela imaginação. É um livro que segue o fluxo da memória e que como ela também é inconstante, descontínuo, sem linearidade, com ritmos variados, como as faixas de um álbum musical. Talvez até mais que isso, pois esse livro engendra memórias, recria o tempo. Veja bem: recria, jamais volta no tempo. Visto que o tempo é irreversível, nunca volta atrás. Não se perde o passado, mas também não se pode repeti-lo. Não se vive duas vezes. O passado em si, tal como foi, jamais é revivido, recuperado. Mas não se deve lamentar! Podemos recriá-lo indefinidamente, de variadas formas, numa composição ou recomposição de intensidades variadas, em diversos níveis e alturas. Um salto no tempo, um mergulho no passado e a emersão dos seus traços na consciência é o que tenho feito nos últimos meses."

Assim, através do livro que Júlia começou a escrever, e não teve tempo de terminar, vemos a dicotomia entre passado e presente e como aquele interfere nesse. E Antony, que é leitor e narrador ao mesmo tempo, intromete-se no meio da história para dar sua opinião, fazendo-nos questionar quem de fato é o autor da obra.


#tempo #memória # juventude #amizade #amor #luto #perda




Luanda Julião

Nasceu em São Paulo, em 1982, mas cresceu em Atibaia, onde morou até 2016. Graduou-se em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo, em 2011, onde também concluiu o mestrado, em 2014. Atualmente, cursa o doutorado em Filosofia Francesa Contemporânea, na Universidade de São Carlos e leciona nas escolas da rede pública e privada. Escreve contos, poesia, romances e roteiros de longa-metragem nas horas vagas. Fiar o tempo é seu primeiro romance publicado pela Clube de Autores. Além desse romance, tem também publicado o livro A Ária das Águas.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Sem gentileza, um livro duro e necessário

Sem gentileza é um livro duro de ler, mas necessário, e imagino que tenha sido difícil escrevê-lo. Quem o assina é Futhi Ntshingila, uma autora sul-africana, e este é seu segundo romance. Ela tem um comprometimento social com suas raízes africanas e em sua obra busca retratar um estrato da sociedade que geralmente é renegado e não ocupa o espaço central em romances, sequer aparecendo na grande maioria. 
editora dublinense

O livro conta a história de Mvelo, uma jovem de 14 anos, mas com uma aparência de uma mulher muito mais velha, tamanho é o peso que carrega nas costas apesar de tão pouca idade. Trata-se de uma jovem que cuida da mãe, que é soropositiva e tem seu benefício cortado pelo governo.

Mvelo observa de perto o definhar de sua mãe e a situação caótica que a AIDS tem causado em seu ambiente. Ela desiste de ir para a escola, pois sabe que a mãe não tem condições de pagar por seus estudos. O ambiente em que vive, além de ser muito hostil, é um lugar em que a mulher tem sua liberdade limitada devido ao machismo instaurado na sociedade, que se reflete na figura dos abusadores de garotas como Mvelo.

Zola sente imenso amor pela filha e se preocupa muito com o que será dela após sua morte, que ela sabe chegar em breve. Mvelo frequenta a igreja local, mas, justamente nesse ambiente em que deveria se sentir segura, é vítima de abuso sexual e engravida. A partir desse dia, um peso enorme toma conta de seu coração e se reflete em seu semblante. Ela não deseja o bebê, pois acredita que nada tem a  oferecer a ele.

Uma figura muito importante na vida de Mvelo é Nonceba, uma mulher linda e independente que ela conhece por meio de Sipho, com quem sua mãe se relacionou por algum tempo. Nonceba era tudo que Mvelo sonhava um dia ser, mas sua história também foi marcada por dificuldades. Seu pai era branco e sua mãe, uma jovem negra revolucionária. Embora ele fosse apaixonado por ela, não teve coragem de assumi-la perante sua família, abandonando-a em um momento de tensão racial e política, reflexo do período do apartheid.

Nonceba é uma figura muito importante porque, mesmo Mvelo nutrindo certo sentimento de rejeição por ela após ela ter namorado Sipho, é a figura que cuida dela após a partida de sua mãe, é a figura que a ensina a se reconciliar consigo mesmo habitando um mundo tão hostil para com as mulheres, um mundo sem gentileza.



Patricia Anunciada

Formada em Letras pela PUCSP, pós graduada em Língua e Literatura pela UNICAMP, atualmente estuda Literatura na UNIFESP. Atua como professora da rede municipal e desenvolve projetos voltados para a área das relações étnico-raciais. Possui um canal chamado Letras Pretas, onde indica obras e autores para trabalhar em sala de aula, com foco na Lei 10.639. Escreve para o Blogueiras Negras sobre literatura, feminismo e racismo.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Três poemas escrevividos por Tayná Corrêa

Só custa o sorriso

Há uma fratura exposta
E o risco de infecção
O corpo deslocado
Em estado de petição.
Cláusulas nos deixam enclausurados
Encucados, encarcerados, esbaforidos, em grave quadro.
Toma enquadro na sala e no portão
O currículo digitado pensado pra inserção
No mercado, mercado de trabalho
Que brinca com teu sustento, te compra e vende pela metade do preço.
Promoção, custa só teu sorriso
Numa boca desdentada, que por nada perdeu o siso.
Veja isto, isto é, na folha de São Paulo somos as letras do roda-pé.
Quem sentiu a brisa forte, sabe o preço de uma noite
Espera pela manhã pra ver se pede o reembolso.
Troco? Quem te viu e quem te vê.
Tá barato pro patrão, quase de graça pra patroa.
A força de trabalho, Senhora, só custa teu sorriso.
Cada caso de injustiça é um copo de veneno, quem bebeu morreu
O culpado não sou eu, é quem comanda esse museu.



Hipotenusa

Obtusa pelo ângulo que tenho visto as coisas
de canto observo as linhas traçadas
360 é o grau, cada dia um degrau
5 são excedentes dos que desisti
busquei na Geometria, o que o feudalismo comprimiu
medida de terra? gritei, quem ouviu?
eu? mulher? ainda mais, preta...
nessa figura sou hipotenusa, 
aquela que  se estende debaixo
esperando pela tangente que é uma
linha que toca num ponto da outra sem a cortar.
Enfim, tão complicada como a vida da mulher que é a matemática,
dilata as vistas, fria espanta, frente às contas que vem somando
e sempre que negativa nessa equação
não dá solução!
Hipotenusa, medusa, medula, carne fria
Pia, chia, grita, fica à moda antiga,
Dá barriga, fadiga, dá à luz, sente sozinha.
Sexo frágil? mas quem fugiu foi quem a enchera.
-- Vai ter de prestar contas, vivendo a vida em plena Somália.
Se desse conta justa talvez se somasse,
mas nos gráficos é estatística.
Morte, estupro, desemprego e revelia.
Ah! do seu grito faz canto, ainda canta em plena palmatória
como se já estivesse em dias de vitória.




Hoje foi

É que hoje foi propício,
mas não é de hoje não
que eu tô me arrastando
observando minha boca
encher de pó
sendo levada por qualquer
emoção
desmotivada por qualquer
desdém.
Não é de hoje que eu ando
desconexa
Perplexa, pensando numa
maneira de ser menos
complexa.
E quando me perguntam:
Está tudo bem?
Quase sempre minto.
Penso que essa é uma pergunta vagabunda
já que tudo é "tudo"
e às vezes uma resposta nem
fica bem.
Tô me convencendo
que hoje eu tô vencida
de faz tempo
e posso estar dando
viajem perdida.
Mas qualquer coisa tô
levando meu caderninho,
pra escrever e ir
denunciando a vida.

Tayná Corrêa














Pedagoga, estudante de teatro, escritora de poesia, rapper, integrante do coletivo Sarauêras.

Jarid Arraes lança, em São Paulo, seu primeiro livro de contos #LoreEntreLinhas

A escritora cearense Jarid Arraes é um grande nome da literatura nacional contemporânea, principalmente conhecida por seus vários cord...