segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Verdades que oprimem não me interessam

MOREIRA, Larissa Ibúmi. Vozes transcendentes: os novos gêneros na música brasileira - São Paulo: Hoo Editora Ltda, 2018.


Raquel Virgínia; Assucena Assucena; Rico Dalasam; Liniker; São Yantó; Linn da quebrada; Tiely; Luana Hansen; Jup do Bairro; Tássia Reis; Erick Barbi; Luedji Luna; Paula Cavalciuk; Jhonny Hooker.
Com certeza, esse é um dos parágrafos mais inspiradores que já escrevi na minha vida. Cada um desses nomes carrega consigo força, beleza, marcas profundas, corpos combativos e muitas dúvidas. Todas aquelas dúvidas que ousam afrontar as verdades patriarcais que tanto oprimem. Nessa ordem em que apresento, cada uma dessas pessoas me tocaram, profundamente, com relatos e narrativas potentes. Narrativas de quem enfrentou o mundo e tem a generosidade de compartilhar suas armas, defesas e estratégias com todas nós.


Escritora e historiadora Larissa Ibúmi
Foto: Lola Almeida
Com sensibilidade ímpar, Larissa Ibúmi Moreira teceu linhas entre os relatos dessxs 14 artistas, transformando-os em agradáveis e potentes crônicas, daquelas para ler antes de dormir e ter bons sonhos. O propósito do livro Vozes transcendentes: os novos gêneros na música brasileira é apresentar ao público uma nova música brasileira. Apelidada carinhosamente de MPBeau, é uma música visceral, que alia à beleza estética das composições, clipes e canções, a luta política de corpos que são negligenciados dia a dia pela sociedade brasileira. Corpos que estão à margem, que incomodam e revelam o quanto a normatividade heterossexual é cruel com quem não se encaixa nas condutas sociais vigentes.

Vozes transcendentes é um livro sinestésico. Em cada relato, há a necessidade de ouvir aquela voz, as melodias, os sentimentos cantados. O que faz com que o leitor se sinta mais próximo dx artista. A identificação é potencializada, após a história de cada letra e de cada música. Assim, partindo de uma leitura muito agradável, procurarei explorar neste texto cinco eixos que muito me tocaram: 1. a violência simbólica heternormativa; 2. como esses corpos se movem, criam e existem; 3. a solidão e o amor de quem desafia o status quo;  4. a espiritualidade negada; e  5. a negritude.

Mesmo com o atual cenário agressivo para com as pessoas trans, lésbicas, gays, pessoas não binárias, dentre outrxs, o livro traz um sopro de esperança e expõe que nas margens para as quais nos empurram, têm surgido uma força centrípeta, que não vai deixar o centro sufocar a margem. São relatos viscerais, fortes e desconfortáveis.

a tarja de conforto do meu corpo diz
não recomendado a sociedade

-- “Não recomendado”, São Yantó

Os relatos versam sobre a violência que sociedade exerce sobre os corpos divergentes, que, para manter o status quo, faz com que os corpos negros, gays, lésbicos, trans vivam desconfortavelmente, invisibilizados, oprimidos. E falam, também, de força, potência, energia que flui e que transforma o desconforto em afronta.

é difícil jogar
quando as regras servem para decretar meu fim
[...]
Pra manter-se vivo respirando nessa caixa
Eu quero mais, eu vou no desdobramento
Nem que pra isso eu tenha que
Formar um movimento
Agora é a preta no comando, no empoderamento
E eu vim logo de bando, vai vendo
Com o afro alaranjado, chegando no talento
Gritando mãos ao alto
E atirando argumento, pow!
Da zona de conforto pra zona de confronto
Vai vendo
Sumemo, me chame de afrontamento!

-- “Afrontamento”, Tássia Reis

O corpo tem espaço privilegiado nas narrativas, o corpo que carrega marcas, alegrias, tristezas e que está no mundo, em viagem e em constante transformação. São relatos de transição de gênero, de descoberta de sexualidades e de como a música nasce dessas experiências de vida, desejo e existência. A música está imiscuida nos processos de descoberta, de revelação, de não aceitação e de conquista da rua, da vida e do amor próprio.

Eu sou um corpo
Um ser
Um corpo só
Tem cor, tem corte

-- “Um corpo no mundo”, Luedji Luna

O amor é um eixo importantíssimo, assim como o corpo. O amor solitário, não correspondido. O sexo escondido, no beco, no banheiro do bar. O parceiro sexual, que goza e nem sempre faz gozar. O homem que quer transar, mas não quer pegar na mão. O sexo que é repudiado, proibido, desrespeitado. Se o sexo existe escondido, o amor é quase impossível. O amor não está disposto a assumir quem transgride as relações amorosas convencionais. O amor transforma-se em letras, em dança, em arte. A companhia do amor é a solidão. A solidão é a companheira de quem não tem a aceitação social:

Igual um despedaço de amor
Que em cada canto de um teto
Destila a caçada de afeto
Em cada cor, cada carro
Cada barro de pele, num jarro de flor

-- “Uma canção para você (Jaqueta Amarela)”,  Assucena Assucena

A solidão se faz potente, ao ponto de irromper em resistência e de possibilitar um amor outro, um amor livre de preconceitos e que vemos brotar nos relatos desse livro. Um amor puro, despretensioso e libertador. O amor opressor não interessa. A cada relato, vemos novas possibilidades de amor, de sexo, de gozo. Não se trata mais de invisibilizar prazeres, mas de construir novas possibilidades de existir, amar, gozar, de ter prazer.

E um dos maiores empecilhos para o livre exercício da sexualidade são as religiões. Em certa medida, as religiões são uma série de autorizações e interdições de comportamentos. O sexo, a nudez, a libido são muito interditados, principalmente nas grandes religiões monoteístas -- judaico-cristã-islâmica. E o que fazer quando a sua espiritualidade está centrada em um modelo opressor, que machuca, que fere e te expulsa da experiência religiosa? Há relatos belíssimos sobre a desconstrução de Deus, da espiritualidade, do que é se relacionar com as divindades e com a religião. Tudo pode ser desconstruído, até a imagem de Deus!

Somada a todos esses fatores, tem a questão racial. Se ser LGBT já é difícil, imagina ser LGBT e negrx? Muitos relatos trazem de forma tocante como a  homofobia e a transfobia subordinadas ao racismo, são muito mais cruéis e se tornam obstáculos mais difíceis de serem transpostos. Quando se é negrx, há a necessidade de enfrentar o racismo diariamente, seja na escola, seja nas ruas, seja no trabalho ou na Universidade. É um duplo ataque aos corpos: se corpos negros não têm valor para a sociedade racista em que vivemos, a população negra LGBT tem menos valor, ainda. O que torna essa população mais vulnerabilizada, mais à margem da sociedade. Cada relato que versa sobre a questão racial, é possível entender que lutar pela vida e pela existência é luta mais difícil quando se é negrx e LGBT.

A Mulher Negra vai marchar contra os Racistas
Pra acabar de vez com a história dos Machistas
Pelo fim do Genocídio da Juventude Negra
Acontece todo dia não finja que não veja
Onde a parcela mais oprimida e explorada da Nação
Luta diariamente contra a Criminalização

-- “Negras em Marcha”, Luana Hansen

Vozes transcendentes é o compartilhamento dos desafios e dilemas que pessoas que não tinham outra opção, a não ser enfrentar a crueza dos preconceitos, fobias,  violência simbólicas e físicas, para que pudessem ser elas mesmas. Traz de maneira poética a potência do Feminismo Interseccional, da importância de darmos visibilidade para todas as opressões e de como a intersecções dessas opressões podem tornar pessoas mais vulnerabilizadas do que outras. É sobre transição, sobre movimento, sobre superação e (re)existência. É um livro para emocionar, para encher o olho de água, para aprender. E a mais bela lição que aprendi, é que a dúvida é o melhor caminho, quando as verdades oprimem.



Simony dos Anjos
Mãe do Bernardo e da Nina. Graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestranda em Educação (USP). Tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade. É feminista cristã, autora do blog Sim Genuflexos,  colunista do Justificando da Carta Capital e integrante do coletivo Evangélicas pela Igualdade de Gênero.

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