sábado, 21 de julho de 2018

Entrevista com Cidinha da Silva #LoreEntreLinhas

Foto: MNB
A Cidinha da Silva é mineira, prosadora e dramaturga, e tem publicados livros de contos, crônicas, poesia e romances infanto-juvenis, além de estar à frente da organização de livros compostos por textos teóricos, como o Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil. Dentre as publicações da autora, as minhas leituras favoritas, até o momento, são: O mar de Manu, Os nove pentes d’África e Cada tridente em seu lugar. Gosto bastante da maneira como a Cidinha apresenta as suas crônicas e novelas e estou na expectativa para ler o seu novo livro: O homem azul do deserto, um conjunto de contos que abordam temas atuais diversos.
 
A Cidinha nos concedeu uma entrevista sobre a sua mais nova publicação. Então, você pode conhecer um pouco mais sobre O homem azul do deserto, a partir de agora: 


LR: Cidinha, os seus livros, para mim, são muito importantes por tratarem sobre ancestralidade (Os nove pentes d'África), resgate das culturas africanas e representatividade para as crianças pretas (como em O mar de Manu), além de trazer à tona críticas a temas necessários, como faz em #ParemDeDosMatar e, agora, em O Homem Azul do Deserto. Como se deu o processo de escrita dos textos contidos em seu novo livro?

Cidinha da Silva: Tenho adotado a prática de publicar, em papel, textos já divulgados na internet. Faço isso por dois motivos básicos. O primeiro é que a internet é “terra de ninguém” e a gente perde a autoria muito facilmente. Pessoas copiam o que a gente escreve ou fazem maquiagens toscas no texto e se utilizam dele de formas inescrupulosas. A publicação em papel preserva mais a autoria e é mais fácil de comparar o original com uma cópia mal feita. O segundo motivo é que a publicação em papel me oferece a possibilidade de rever textos publicados no calor do momento, o que muitas vezes compromete sua atemporalidade. O suporte livro em papel me permite tirar arestas, gorduras, reescrever parágrafos, torna-los mais inteligíveis, refinar a poética. Segui essa trilha para compor O homem azul, mas, essencialmente, eu busquei recuperar o caminho de prosa poética realizado com êxito em Baú de miudezas, sol e chuva (2014). Escolhi textos que fluíssem como água, por mais duro que o tema pudesse ser, foi assim com as questões de política nacional, por exemplo. Um toque de
humor, de ironia cutuca os temas mais ásperos e quer despertar em quem lê possibilidades maiores e mais profundas de leitura do que o noticiário corrente tem nos apresentado. Afora isso, há os temas leves, frugais, alegres, divertidos, o amor, a solidariedade. Temas primeiros que intentam fugir dessa gramática limitada de afetos e intenções que nos aprisiona hoje, principalmente na comunicação e na vida militante de internet.

LR: Quem acompanha o seu blog e sua página no Facebook pôde perceber as postagens sobre o lançamento de #OHomemAzuldoDeserto, que será publicado pela Editora Malê. Você pode nos falar um pouco sobre a campanha de divulgação que vocês estão empregando?

Cidinha da Silva: Em primeiro lugar, é importante dizer que a campanha de divulgação, referida por você, composta por textos reflexivos de minha autoria sobre o livro, seus componentes e etapas, bem como por depoimentos de pessoas-leitoras sobre a expectativa da chegada do Homem azul, foi bolada e é executada por mim. Não conto com equipe para isso. É justo afirmar esse lugar porque escritora independente ou que publica por editoras pequenas precisa jogar nas 11 posições do time, se quiser que seu livro voe como merece. Segundo, conto com o apoio, parceria, disposição e generosidade de número significativo de amigas, amigos e pessoas que curtem meu trabalho literário. De cara, elas entram comigo nas embarcações que crio e dão a coisas simples o ar de campanha publicitária. Essas minhas iniciativas crescem e frutificam porque conto com o afeto real dessas pessoas, manifesto no atendimento a meus convites, tratados muitas vezes como convocações, dado que são pessoas ocupadíssimas, mas que me dedicam uns minutos de seu tempo precioso em nome do apreço que me entregam. Aproveito para agradecer publicamente a cada uma delas. A campanha tem ainda mais 3 etapas que entrarão no ar assim que o livro for lançado. Tem uma versão para o Instragran também, só estou fechando uma parceria, porque sou bastante limitada com essa comunicação digital. 

LR: Como as pessoas estão recebendo esse estilo de divulgação? Há uma maior interação? Se sim, o que está aprendendo com essa troca? 

Cidinha da Silva: Recebo muito carinho das pessoas, muita torcida positiva. Espero que a campanha desperte o interesse pela leitura do livro, que o interesse resulte em aquisição do livro. É preciso comprar os livros da gente para apoiar nosso tr abalho, de toda a cadeia produtiva envolvida, a autora, a editora, as livreiras e livreiros. O livro precisa ser adquirido para que a gente tenha condição de trabalhar mais e melhor. 

Foto: MNB
LR: Você afirmou que, como autora, espera que "#OHomemAzulDoDeserto dê o que falar, no sentido maior das reverberações que impactam a corrente sanguínea e levam o coração a se expressar pela palavra. A ver." Quais textos você pede mais atenção/acredita que vá dar mais o que falar?

Cidinha da Silva: Não sei, difícil dizer porque cada leitora e leitor se debruça sobre o livro com sua história, seu repertório, não é? Isso é o que enseja o diálogo maior com a obra e a autora. Posso mencionar como autora, alguns dos textos que gosto mais e vou dizer o porquê. São textos que me tocam muito, mas, necessariamente, não tocarão a odo mundo que os ler. Escolherei alguns entre os 52: 

1 - Gosto muito do texto que abre o livro, A janela e o passarinho, porque mantenho ali um diálogo com os cronistas lidos na infância, Drummond, especialmente. 
2 - O homem azul do deserto, crônica que dá título ao livro, me pega pelo coração, porque passeia pela diáspora negra e por vários de seus sotaques e essa tem sido uma marca da minha obra. 
3 – Boleros é um texto curtinho que diz um mundo de coisas. Gosto muito quando consigo escrever assim, poucas palavras que abrem veredas interpretativas. 
4 – Você não vale nada, mas eu gosto de você é bem divertido, uma vingança. 
5 – Na terrinha é um dos meus textos que persegue (por dentro) o entendimento dessa coisa que chamam de mineiridade. 
6 – Vozes da bibliodiversidade na FLIP e no mundo das festividades literárias é um texto que trata de um tema muito caro a mim, nossa circulação pelo mercado editorial. 
7 – Cronista analógica de um tempo digital é um texto bem biográfico (aviso para quem vive procurando a vida da autora na literatura que ela escreve).
8 – O ano em que nos proibiram o sonho e a alegria é um retrato de 2015 e da gestação do golpe parlamentar, midiático e jurídico que nos atingiria em 2016. 
9 – Foi bonita a festa é mais um texto sobre Sueli Carneiro, escrito depois da noite em que ela recebeu uma premiação importante. 
10 – Atotô é um dos textos do livro que tratam do direito à cidade na perspectiva das africanidades.
De verdade, como leitora, recomendo o livro. Está bem legal. ◾

Os primeiros lançamentos de O homem azul do deserto estão acontecendo durante o mês de julho. Abaixo, estão algumas datas para que você possa se programar para marcar presença: 

10/07/18 – Sarau da Cooperifa - São Paulo (início da turnê nacional)
13/07/18 – FIT – Festival de Teatro de São José do Rio Preto, SP
17/07/18 -  São Paulo - SP (Ação Educativa)
24/07/18 – Recife - PE (SESC) 
25/07/18 – Festival de Inverno de Garanhuns, PE 
27/07/18 – Arcoverde, PE (SESC) 
28/07/18 – Pernambuco, PE (SESC)

Você também pode comprar O homem azul do deserto através do site da Editora Malê: https://www.editoramale.com/, e entrando em contato com a própria autora: 
Blog: https://www. http://cidinhadasilva.blogspot.com
Facebook: https://www.facebook.com/cidinhadasilvaescritora/

Por Lorena Ribeiro


Graduada em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestra em Língua e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutoranda na mesma instituição. É criadora de conteúdo no Youtube e Instagram, junto com seu companheiro Rafael, no projeto Passos entre Linhas. No canal, o casal bate papos sobre livros, filmes e lugares que gostariam de compartilhar com o público. Pesquisadora na área da Linguística, Lorena segue, com Passos entre Linhas, mantendo acesa sua paixão pela Literatura. 

sexta-feira, 13 de julho de 2018

O racismo nas famílias inter-raciais

Esse mês dois episódios, um com alunos na escola onde eu leciono e outro na minha família, fizeram emergir em minha consciência memórias longínquas, reacendendo em mim o desejo de escrever sobre algo que é quase tabu de se dizer numa sociedade onde embora as pesquisas atestem que o Brasil é um país racista, as pessoas se autodeclaram como não racistas: o racismo dentro das famílias.

O primeiro evento trata-se de dois alunos que são meios-irmãos por parte de mãe. O mais velho tem 15 anos e o mais novo três anos a menos. Ambos são filhos de uma mulher negra de pele bem escura, mas o mais novo, por ter um pai branco, tem a pele bem mais clara que o irmão mais velho, que tem a cor da pele igual sua mãe. Essa diferença na tonalidade faz com que o irmão mais jovem se ache no direito de ofender e humilhar racialmente o irmão mais velho. Chamei a atenção do mais novo, dizendo que o ele fazia era racismo e que ele também, embora tivesse a pigmentação da pele mais clara que a do irmão e quisesse esconder sua negritude, seus traços físicos (nariz largo, cabelo crespo) o delatavam. “Não sou macaco, nem feio como ele”, foi o que ele me respondeu friamente, virando-me as costas e revirando em mim lembranças da infância e da adolescência em que situações parecidas com essas também estavam presentes.

Na mesma semana, um segundo episódio veio a corroborar o primeiro: o nascimento da minha sobrinha. O fato é que o nascimento desse novo membro familiar trouxe à tona uma ansiedade antiga no âmbito doméstico: o fenótipo do bebê. Uma angústia implícita pairava no ar: se ela herdaria os traços da minha irmã (afrodescendente) ou se herdaria os traços do pai (branco). Essa inquietação em saber a tonalidade da pele, o formato do nariz, o tipo de cabelo fez com que minha memória abrisse as portas para lembranças antigas e dolorosas, me fazendo pensar sobre algo que apesar de ser tão claro eu nunca compreendi direito e que talvez por não compreender eu sempre reprimi: o racismo nas famílias inter-raciais.

Eu tinha entre quatro e cinco de idade quando comecei a sentir na pele a violência racial. Sim, com cinco anos de idade, embora eu ainda não soubesse elaborar racionalmente o que acontecia, eu já tinha a percepção e um desconcerto na alma de que os meninos preferiam dançar quadrilha com as meninas brancas, que os papéis mais importantes nas apresentações escolares ficavam para as crianças loiras e de olhos claros e que a minha cor e o meu cabelo crespo eram alvo de insultos, camuflados como brincadeiras, por parte dos coleguinhas de sala. Insultos estes que eram negligenciados e ignorados através do silêncio das professoras (as “tias”) e toda a equipe da escola, que envernizavam todas essas ofensas como “coisas de crianças’. Mas a questão do racismo na escola abordarei em outro texto. Aqui, eu quero chamar a atenção para a violência racial nas famílias inter-raciais, pois quando as hierarquias raciais reverberam também no mote familiar, evadindo o palco social e adentrando também nos lares, visualizamos também, embora à primeira vista pareça inadmissível, o racismo presente na esfera mais íntima e primeva do indivíduo. Consequentemente, vislumbramos que a família (esse grupo de pessoas com parentesco e ancestralidade em comum) atribui a cada um dos seus membros um significado determinado e atravessado pelo contexto histórico e social que intervém no convívio afetivo entre os seus componentes.

Durante a minha infância o meu cabelo era bem crespo, “difícil de pentear”. Em meados da década de 1980 não havia no Brasil essa pluralidade de cosméticos que há hoje para os cabelos afros (ou se havia, eram caros demais). Minha mãe (descendente de índios e portugueses), que sempre teve o cabelo muito liso, escorrido, não tinha paciência para pentear o meu cabelo “duro” e “rebelde”, como ela mesma se referia a ele. Todos os dias, antes de ir para escola ela tentava “domá-los” e todos os dias eu chorava ao sentir dor por ter meus cabelos puxados e agredidos por uma escova e um pente feitos para pentear cabelos lisos. Quanto mais eu chorava, mais ela os puxava e mais ofensas eram dirigidas a eles e a mim, como se eu fosse a culpada de ter o cabelo “ruim” e de ter geneticamente herdado em maior grau os traços negros do meu pai e da minha avó paterna, negra retinta.
Até que um dia, furiosa por tentar amansar inutilmente o meu cabelo, ela pegou a tesoura e o cortou bem curto, quase a zero. Cheguei na escola chorando. Nesse dia, meus coleguinhas da escola não riram mais do meu cabelo “duro”, mas sim da ausência dele, pois agora, segundo eles, eu parecia um menino. Nesse dia eu ganhei um novo apelido: Pelé, alcunha que me perseguiu até os meus cabelos crescerem de novo. Por um milagre capilar inexplicável, desse dia em diante meus cabelos cresceram um pouco mais lisos, mais maleáveis à escova e o pente e “mais bonitos”. Inclusive, esse é o discurso de minha usa até hoje para legitimar a violência que infligiu aos meus cabelos.
Minhas duas outras irmãs nasceram com a pigmentação da pele mais clara e com os cabelos mais fáceis de pentear. Esses momentos “banais” para elas não tiveram o mesmo sofrimento despendido a mim.
Eu cresci numa família em que os casamentos inter-raciais são bastante comuns, de maneira que nas festas e reuniões familiares é habitual encontrarmos parentes de pele branca ou com diferentes tonalidades da pele negra .
Minha avó paterna, que foi filha de escravo, tinha a pele bem preta, bem retinta. Já o meu avô paterno era italiano e tinha a pele branca e os olhos azuis. Dos cinco filhos que eles tiveram juntos, alguns puxaram mais para a cor dela e outros mais para a cor dele. A mesma variedade na pigmentação da pele aconteceu com os netos, meus primos.
O fato é que nessas reuniões e encontros familiares, principalmente durante a minha infância, primos e primas, irmãos e irmãs, tios e tias zoavam “naturalmente” com a cor da pele e o cabelo um dos outros, de maneira muito parecida a que eu presenciei entre os meus dois alunos. Frases como “seu cabelo parece um bombril”, “raça ruim”, “macaca”, “encardida” difamavam as características fenotípicas de uns, para exaltar o “branqueamento” de outros. Era a parte mais-branca da família discriminando, rejeitando, excluindo, difamando a parte não-branca ou aqueles que não-são-tão-brancos. Esses que proferiam frases preconceituosas aos mais escuros autodefiniam-se como moreno, moreninho, moreno-claro, moreno-escuro, cor de jambo ou qualquer outro eufemismo que abrandasse sua própria negritude. Era a branquitude (embranquecimento) que era valorizada. Quando uma mulher da família aparecia grávida era comum torcer para que o novo ente herdasse o fenótipo do meu avô: branco de olhos azuis. Era a cor dele almejada como ideal de beleza. Via-se, portanto, os mesmos significados enrijecidos pela sociedade e internalizado em nós como hábitos e formas de interpretar o mundo reproduzidos nos vínculos familiares e de afeto. Minha família apropriava-se dos significados sociais racistas e da ideologia do embranquecimento e, guiando-se em valores e ideais brancos, desvalorizava o mundo, a cultura e os sujeitos negros.
Hoje eu entendo a dificuldade em assumirem-se como negros num país em que os privilégios são dirigidos aos brancos e àqueles de pele mais clara. Desde pequenos, inconsciente, já sabemos que no Brasil a cor da pele adquire conotações e privilégios distintos, uma vez que quanto mais traços negros você tem, ou seja, quanto mais escura for a sua pele, mais exposto ao racismo você está .
Num país em que a pele preta carrega o estereótipo da inferioridade, da dor, do menosprezo e da discriminação não nos espanta o fato dos afrodescendentes não saberem o que ou quem são (suas raízes, suas lutas) ou de desejarem não ser o que são. (embranquecimento ou branqueamento forçado).
Em minha família a identidade negra adquiria conotações negativas tal como eram exibidas fora do âmbito familiar. Ou melhor: era pior porque não era algo que estava fora, que se podia enxergar obliquamente, ou seja, as ressonâncias e sequelas não eram impessoais ou exteriores, se assim podemos nos expressar. Não era um racismo camuflado, pintado com as nuances da falaciosa “democracia racial”. Eram pessoas íntimas, que declamavam ofensas travestidas de afeto e proximidade nas situações mais banais e cotidianas, tais como pentear o cabelo, varrer a casa, brincar, desenhar, cozinhar, escovar os dentes, etc. Diante disso, era bastante comum comigo e com outras pessoas da família a não aceitação, a rejeição de sua autoimagem, das suas origens, da sua cor, do seu fenótipo. Era o racismo ferindo, “mordendo” e deixando cravada a sua marca.
É preciso lembrar que o Brasil o encerrou um período de mais de 350 anos de escravidão há pouco tempo, mais especificamente há 130 anos. Esse passado não tão longínquo ainda pesa sobre os ombros dos descendentes desses escravos, pois o negro ainda está associado à servidão, à escravidão, à exclusão afetiva, sexual, social, política, estética e intelectual. Enraizado em nossa sociedade, uma vez em que o Brasil nasceu submetido à violência racial, o racismo enquanto sistema estruturante das sociedades, abarca todos os aspectos e instituições da vida social, inclusive a família. Logo, não é difícil concluir que não há qualquer forma social que não seja atravessada pela ideia de raça e sua hierarquização. Há nas famílias brasileiras aquele mesmo racismo característico da nossa sociedade: silencioso, quase imperceptível, no entanto, inaudito, que desperta sentimentos pungentes em suas vítimas.
É preciso lembrar também que “ao contrário das experiências norte-americanas ou sul-africanas que estabeleceram regras claras de ascendência mínima para definir seus grupos sociais, nas quais, por exemplo, uma gota de sangue negro era mais que suficiente para macular a suposta pureza racial dos brancos ”, no Brasil o racismo sempre operou de maneira distinta e peculiar, uma vez que não é árvore genealógica do indivíduo que apontará aquele que deve ser excluído e humilhado, mas sim a pigmentação da pele, ou seja, criou-se essa ideia de “parcialmente negro, “pardo mais escuro”, “pardo mais claro”. Ademais, sempre se afirmou a interação “pacífica” entre brancos e negros e a ideia de que não há distinções entre eles. Essa astúcia em se negar o racismo no Brasil fez com que durante muito tempo os próprios negros se calassem em relação à negação de direitos, significado e afeto.
Durante a minha adolescência, o meu sonho era estampar a capa da revista Capricho. Era um sonho tão grande que durante anos eu e minha prima, que tem a pele mais clara, procuramos agências de modelos. A oportunidade de fazer testes eram mais frequentes a ela, as recusas dos poucos testes que eu fazia eram mais frequentes a mim, no entanto, eram as comparações de beleza, sustentadas em características raciais ressaltadas, que a minha família fazia entre nós duas o que mais doía em mim.
As agências alegavam que o meu nariz era muito largo, a boca grande demais, o cabelo muito crespo. “Se você fosse um pouquinho mais clara”, uma vez um booker me disse. Essa frase reverberou em mim durante muitos anos da minha juventude e me roubou finais de semana na piscina e na praia, pois me fez veemente detestar a possibilidade de eu tomar sol e ficar ainda com a pele mais escura. Todos os dias eu media o meu nariz para ver se ele havia diminuído com o prendedor que eu colocava nele ao me deitar para dormir. Eu era aquela me olhava no espelho e me sentia feia, muito feia e mal-amada, desmerecedora de afeto. Eu era aquela era aquela que sobrava nos bailinhos da escola, a menos paquerada, desejada e amada, a que mais apanhava dentro de casa, aquela cujos trabalhos domésticos ficavam em sua maioria para mim, aquela em que ser ridicularizada publicamente era algo normal, aquela em que a solidão foi uma imposição e não uma escolha.

Luanda Julião
Nasceu na cidade de São Paulo, em 1982, mas cresceu em Atibaia, onde morou até 2016. Graduou-se em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo, em 2011, onde também concluiu o mestrado, em 2014. Atualmente, cursa o doutorado em Filosofia Francesa Contemporânea, na Universidade de São Carlos e leciona nas escolas da rede pública e privada. Escreve contos, poesia, romances e roteiros de longa-metragem nas horas vagas. Fiar o tempo é seu primeiro romance publicado pela Clube de Autores. Além desse romance, tem também publicado o livro A Ária das Águas.

Jarid Arraes lança, em São Paulo, seu primeiro livro de contos #LoreEntreLinhas

A escritora cearense Jarid Arraes é um grande nome da literatura nacional contemporânea, principalmente conhecida por seus vários cord...