sábado, 30 de junho de 2018

Escrevo porque, pra que e por quem...

Eu escrevo desde que me entendo por gente.
Escrevo porque sou silenciada desde que aprendi a falar.
Sou silenciada desde que aprendi a ter voz, mas sempre quiseram me tirar a vez.
Eu escrevo porque todo o tempo sou posta como pequena demais, pouca demais.
Sou pequena para aqueles que já são grandes em tudo o que querem ser, sou quase nada para aqueles que já são e têm tudo nas mãos. Eles sempre têm a voz e a vez. Eu quase nunca tive. Só tenho quando grito, por isso eles querem me calar.
Eu escrevo poque fui violentada em silêncio, porque, da maneira mais velada possível, não deixaram que eu falasse por mim. Sempre quiseram ser minha voz.
Eu ponho no papel e aqui o que desde anos atrás eu não pude sequer falar pra mim mesma em voz alta. Eu ponho para fora o que tanto quiseram que ficasse aqui dentro.
Existiam vários "porquês" para que quisessem o meu silêncio, eu não pude questionar para ninguém, sempre perguntei a mim por que me ensinaram que eu sempre seria a culpada por tudo que me acontecesse (de ruim, claro), mas quando aprendi a escrever, e essa prática se tornou um hábito, eu entendi que, apesar de silenciada, lá no fundo eu sabia que um dia a minha voz iria reverberar, pelo menos entre os meus, e que eu não iria precisar implorar para ninguém entender que a culpada nunca fora eu, mas sempre foram eles, pelo meu sumiço, pelo meu silêncio, pela minha dor.

(Inspirado no texto Uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo, de Glória Anzaldúa, 2000.)


Grazielle Barbosa
Graduanda em Comunicação Social, com habilitação em rádio e TV, pela Universidade do Estado da Bahia, e blogueira.




quinta-feira, 14 de junho de 2018

Racismo e Afeto -“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Era uma semana de muitas expectativas, de incertezas, emoções confusas, sem saber ao certo por onde deveria começar um pensamento. E assim, a semana ficou mais ansiosa, depois se transformou em triste e triste, coração cada vez mais apertado, como se ninguém te enxergasse. E você não cabendo dentro do mundo, das palavras, dos espaços. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”


Aquele dia começou bem mais estranho do que os outros — "Você está trabalhando, concentra, por favor "... "Depois você vê o que faz com tudo que dói". Depois... Depois..., se o tempo não te arrancar esse tempo. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Estava lá disfarçando as emoções, fingindo atrás de uma maquiagem bem-feita, que não era comigo, que era silêncio apenas. Quando observo ao longe duas meninas, pele como a minha, um pouco mais que a minha ou um pouco menos, tanto faz. Por que tudo isso deve importar? Por quê? Queria apenas dizer que dentro da diversidade eram duas pessoas singulares. Ainda não posso. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Rapidamente os olhares se fisgaram dizendo "— Eu te reconheço!", em sequência, a vez dos lábios, vão se abrindo aos poucos, e o rosto todo vai se iluminando, e sem nenhuma cerimônia caímos para dentro de nossos braços, tão afetuosos e chamegados que o peito explodiu de felicidade, e o que doía virou pó. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”


O afeto aconteceu sem ao menos trocarmos saudações conforme a etiqueta da educação. Simplesmente nos cheiramos e nos apoiamos com tanta intimidade, daquela que só se explica dentro da nossa epiderme. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Existe nessa gente algo que só acontece dentro dessa pele escura, que não existe dicionário que dê conta de explicar, um afeto que flui naturalmente quando passamos. Quando nos desafiamos a estar onde não deveríamos estar. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”


Não! A maioria dos espaços na sociedade brasileira ocupamos apenas da porta para fora: vigiamos, guardamos, cuidamos, servimos, tudo em um desgraçado silêncio. Quando se distraem e deixam a porta aberta, ou, quando simplesmente destravamos a porta inteligentemente: falamos, ouvimos, gritamos, dançamos. Somos nós! Experimentamos liberdade. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”
Nessas doloridas oportunidades em que encontramos poucos de nós de cabeça erguida e peito cheio, o afeto acontece como o ar que respiramos, quase como um desafogamento. E, como se fôssemos um salva-vidas, nos atracamos com intensidade. E só depois de recarregar as baterias de todos os orgãos da alma é que conseguimos dizer: "Que bom que você está aqui!"; "Que bom que você está aqui!". “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”
Precisamos de poucas palavras, tudo é compreendido apenas com a presença. Nos nossos afetos, elas ficam tímidas. E quase não são necessárias também as explicações dos motivos da resistência. Sim, no lugar onde não deveríamos estar, onde não poderíamos ser. Sim, aquele lugar que deixamos de porta arrebentada, porque é preciso entrar. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Foi quando ouvi sobre a necessidade de comunidades quilombolas,  como são os conhecedores de matas e rios, e a Natureza é fundamental para suas crenças, seus valores culturais e de  como são violados nos seus direitos. Para essa gente que é esquecida, mas que sabe cuidar de toda a vida, nada tem! Tudo fica escasso. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Uma gente preta que os governos abandonam na periferia da vida. Uma gente que não é de pele transparente para ser enxergada. É essa gente que se relaciona com o sagrado, que cuida de muita e toda a gente brasileira. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”
Ouvir sobre mulheres negras empoderadas, e como ficam mais lindas em nossas lutas. E como a Bahia precisava de mais uma. Mas eu ouvi também em alto e bom som carregado de dor e revolução: mataram uma de nós no Rio de Janeiro, mas nós resistimos”. E com o punho cerrado para o alto como se quisesse alcançar Marielle, o coro se fez: “Nós resistimos - existimos! ”. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Não, não estamos disputando a dor de Marielle, não vamos determinar quem sofre mais ou quem sofre menos. Não, não vamos disputar a qual minoria ela pertence mais. Tem um detalhe em tudo isso não vamos entrar no certo ou errado, mas no que realmente é como se é. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”


Foto: Ian Maenfeld
Marielle, é evocada e a perda dói muito, porque sabemos que é quase impossível essa gente de pele escura chegar em algum lugar e ter a voz ecoada de reivindicações. Ela lutou, sem medo, por muita humanidade, direito, respeito e dignidade por aquele que nunca foi visto como humano. Lutou, gritou e falou muito que era preciso acabar com a escravidão de nossa gente preta. E a sua pele confirmava o lugar de onde falava e porque falava. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Porque essa gente toda escura e preta chora todos os dias por mais uma perda.
Porque essa gente toda escura e preta chora todos os dias por mais uma preta.    
Porque essa gente toda escura e preta chora todos os dias por mais uma perda.
Porque essa gente toda escura e preta chora todos os dias por mais uma preta.

“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe? ”

Justo você chorar por Marielle, e tem que chorar mesmo. A sua luta era por um país que pudesse incluir todos os seus filhos. Exerceu até as últimas consequências os direitos humanos sem titubear. Mas seria lindo se você também conseguisse entender um grito negro sofrido, desesperado, perdido, desolado. Esse é o de quem perdeu Marielle. E quem perdeu Marielle, tem especificidade. Ela, Marielle, é aquela preta atrevida e fujona que conseguiu se libertar da senzala para gritar e sensibilizar o mundo sobre nossas dores. Mas foi impedida no meio do caminho. Falou, mas não foi tudo que estava pesado no peito. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”


Somos muitos e muitas no país, 54% da população. Depois da África, somos o país com mais negros no mundo. Mas ainda somos raros nos espaços onde as decisões sobre a nossa existência acontecem. Quase ninguém reivindicando a nossa humanidade, o nosso existir! “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe? ”

Usaram todas as semânticas e sintaxes para provar a nossa incompetência intelectual. Literatura e cinema também. Música e toda a arte que pudesse inspirar gerações falando de nossa inferioridade. Um conjunto de ideias que imprimiu em nossa pele o medo, o horror no outro. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe? ”

Por que investiram tanto em nos massacrar? Por que buscou o esvaziamento de nossas almas? Por quê? “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

O teu racismo é ironicamente belo. Ele nos deu essa identificação que faz com choremos demasiadamente por Marielle, sem que você consiga compreender. Essa doença nos mata todos os dias, mas ela também nos conecta ultrapassando barreiras que nem nós entendemos. Quando nos damos conta, já estamos de punho levantado e gritando “nós resistimos! ”. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”


O racismo é a invenção mais eficaz, uma inovação potente que atravessa as gerações reproduzindo os mesmos resultados: dor. Um trabalho intenso para imprimir na essência de toda a pessoa humana que os de pele escura não têm humanidade. E é justamente nesse lugar que vivemos os nossos afetos, amor e reconhecimento.
“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

É por conta do racismo que, apesar de peito dilacerado, ainda pulsamos dizendo pelos de ontem e de hoje:

Foto: Julio Cesar

Zumbi, presente!
Dandara, presente! Luiza Mahin, presente! Luiz Gama, presente! Lélia González, presente! Luana Barbosa, presente! Claudia, presente! Marielle, presente!

“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”  

Tem muita gente presente!

Você leva um, nasce cem!
Nunca vamos deixar de ser gente!
Somos muchos hermanos
Con muchos primos
La familia es grande porque nos reproducimos”
Porque é o teu racismo que impulsiona mais afeto entre nós
Foi ele que ensinou, que juntos, podemos mais 
Porque nele nos reivindicamos da cabeça aos pés 
Da Ancestralidade à Cultura
Recuperamos o amor que foi estuprado na tua escravidão
E ainda tem muita gente morrendo nessa invenção:


Malcom X
Adelina – A Charuteira
Martin Luther King
Beatriz Nascimento
Auta de Souza
Nelson Mandela
Nzinga
Tereza de Benguela
Maria Firmina dos Reis
Rosa Parks
Harriet Tubman
Wangari Maathai

Marielle Franco


“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?” 
“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”
“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”




Texto inspirado em um encontro com Rita de Cássia Braga e Maria Lúcia Brito, no 8º Fórum Mundial da Água – Brasília/DF
Juliane Sousa

Formada em Letras/Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo, jornalista, ambientalista, apresentadora de rádio e televisão, coordenadora de produção, roteirista e poeta. Faz parte dos coletivos “Mulheres Negras na Biblioteca”, “Conversa de Negras” e do "Sarau Carolinas e Firminas”. Trabalha como apresentadora do programa Biosfera, na Boa Vontade TV, há 11 anos. Publicou: “Os médicos Cubanos e o Racismo no Brasil” (artigo que faz parte do livro “Mais amor, seu doutor! Os médicos cubanos entre nós).

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