MOREIRA, Larissa Ibúmi. Vozes transcendentes: os novos gêneros na música brasileira - São Paulo: Hoo Editora Ltda, 2018.
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Raquel Virgínia; Assucena Assucena; Rico Dalasam; Liniker; São Yantó; Linn da quebrada; Tiely; Luana Hansen; Jup do Bairro; Tássia Reis; Erick Barbi; Luedji Luna; Paula Cavalciuk; Jhonny Hooker.
Com certeza, esse é um dos parágrafos mais inspiradores que já escrevi na minha vida. Cada um desses nomes carrega consigo força, beleza, marcas profundas, corpos combativos e muitas dúvidas. Todas aquelas dúvidas que ousam afrontar as verdades patriarcais que tanto oprimem. Nessa ordem em que apresento, cada uma dessas pessoas me tocaram, profundamente, com relatos e narrativas potentes. Narrativas de quem enfrentou o mundo e tem a generosidade de compartilhar suas armas, defesas e estratégias com todas nós.
Escritora e historiadora Larissa Ibúmi Foto: Lola Almeida |
Com sensibilidade ímpar, Larissa Ibúmi Moreira teceu linhas entre os relatos dessxs 14 artistas, transformando-os em agradáveis e potentes crônicas, daquelas para ler antes de dormir e ter bons sonhos. O propósito do livro Vozes transcendentes: os novos gêneros na música brasileira é apresentar ao público uma nova música brasileira. Apelidada carinhosamente de MPBeau, é uma música visceral, que alia à beleza estética das composições, clipes e canções, a luta política de corpos que são negligenciados dia a dia pela sociedade brasileira. Corpos que estão à margem, que incomodam e revelam o quanto a normatividade heterossexual é cruel com quem não se encaixa nas condutas sociais vigentes.
Vozes transcendentes é um livro sinestésico. Em cada relato, há a necessidade de ouvir aquela voz, as melodias, os sentimentos cantados. O que faz com que o leitor se sinta mais próximo dx artista. A identificação é potencializada, após a história de cada letra e de cada música. Assim, partindo de uma leitura muito agradável, procurarei explorar neste texto cinco eixos que muito me tocaram: 1. a violência simbólica heternormativa; 2. como esses corpos se movem, criam e existem; 3. a solidão e o amor de quem desafia o status quo; 4. a espiritualidade negada; e 5. a negritude.
Mesmo com o atual cenário agressivo para com as pessoas trans, lésbicas, gays, pessoas não binárias, dentre outrxs, o livro traz um sopro de esperança e expõe que nas margens para as quais nos empurram, têm surgido uma força centrípeta, que não vai deixar o centro sufocar a margem. São relatos viscerais, fortes e desconfortáveis.
a tarja de conforto do meu corpo diz
não recomendado a sociedade
-- “Não recomendado”, São Yantó
Os relatos versam sobre a violência que sociedade exerce sobre os corpos divergentes, que, para manter o status quo, faz com que os corpos negros, gays, lésbicos, trans vivam desconfortavelmente, invisibilizados, oprimidos. E falam, também, de força, potência, energia que flui e que transforma o desconforto em afronta.
é difícil jogar
quando as regras servem para decretar meu fim
[...]
Pra manter-se vivo respirando nessa caixa
Eu quero mais, eu vou no desdobramento
Nem que pra isso eu tenha que
Formar um movimento
Agora é a preta no comando, no empoderamento
E eu vim logo de bando, vai vendo
Com o afro alaranjado, chegando no talento
Gritando mãos ao alto
E atirando argumento, pow!
Da zona de conforto pra zona de confronto
Vai vendo
Sumemo, me chame de afrontamento!
Eu quero mais, eu vou no desdobramento
Nem que pra isso eu tenha que
Formar um movimento
Agora é a preta no comando, no empoderamento
E eu vim logo de bando, vai vendo
Com o afro alaranjado, chegando no talento
Gritando mãos ao alto
E atirando argumento, pow!
Da zona de conforto pra zona de confronto
Vai vendo
Sumemo, me chame de afrontamento!
-- “Afrontamento”, Tássia Reis
O corpo tem espaço privilegiado nas narrativas, o corpo que carrega marcas, alegrias, tristezas e que está no mundo, em viagem e em constante transformação. São relatos de transição de gênero, de descoberta de sexualidades e de como a música nasce dessas experiências de vida, desejo e existência. A música está imiscuida nos processos de descoberta, de revelação, de não aceitação e de conquista da rua, da vida e do amor próprio.
Eu sou um corpo
Um ser
Um corpo só
Tem cor, tem corte
-- “Um corpo no mundo”, Luedji Luna
O amor é um eixo importantíssimo, assim como o corpo. O amor solitário, não correspondido. O sexo escondido, no beco, no banheiro do bar. O parceiro sexual, que goza e nem sempre faz gozar. O homem que quer transar, mas não quer pegar na mão. O sexo que é repudiado, proibido, desrespeitado. Se o sexo existe escondido, o amor é quase impossível. O amor não está disposto a assumir quem transgride as relações amorosas convencionais. O amor transforma-se em letras, em dança, em arte. A companhia do amor é a solidão. A solidão é a companheira de quem não tem a aceitação social:
Igual um despedaço de amor
Que em cada canto de um teto
Destila a caçada de afeto
Em cada cor, cada carro
Cada barro de pele, num jarro de flor
-- “Uma canção para você (Jaqueta Amarela)”, Assucena Assucena
A solidão se faz potente, ao ponto de irromper em resistência e de possibilitar um amor outro, um amor livre de preconceitos e que vemos brotar nos relatos desse livro. Um amor puro, despretensioso e libertador. O amor opressor não interessa. A cada relato, vemos novas possibilidades de amor, de sexo, de gozo. Não se trata mais de invisibilizar prazeres, mas de construir novas possibilidades de existir, amar, gozar, de ter prazer.
E um dos maiores empecilhos para o livre exercício da sexualidade são as religiões. Em certa medida, as religiões são uma série de autorizações e interdições de comportamentos. O sexo, a nudez, a libido são muito interditados, principalmente nas grandes religiões monoteístas -- judaico-cristã-islâmica. E o que fazer quando a sua espiritualidade está centrada em um modelo opressor, que machuca, que fere e te expulsa da experiência religiosa? Há relatos belíssimos sobre a desconstrução de Deus, da espiritualidade, do que é se relacionar com as divindades e com a religião. Tudo pode ser desconstruído, até a imagem de Deus!
Somada a todos esses fatores, tem a questão racial. Se ser LGBT já é difícil, imagina ser LGBT e negrx? Muitos relatos trazem de forma tocante como a homofobia e a transfobia subordinadas ao racismo, são muito mais cruéis e se tornam obstáculos mais difíceis de serem transpostos. Quando se é negrx, há a necessidade de enfrentar o racismo diariamente, seja na escola, seja nas ruas, seja no trabalho ou na Universidade. É um duplo ataque aos corpos: se corpos negros não têm valor para a sociedade racista em que vivemos, a população negra LGBT tem menos valor, ainda. O que torna essa população mais vulnerabilizada, mais à margem da sociedade. Cada relato que versa sobre a questão racial, é possível entender que lutar pela vida e pela existência é luta mais difícil quando se é negrx e LGBT.
A Mulher Negra vai marchar contra os Racistas
Pra acabar de vez com a história dos Machistas
Pelo fim do Genocídio da Juventude Negra
Acontece todo dia não finja que não veja
Onde a parcela mais oprimida e explorada da Nação
Luta diariamente contra a Criminalização
-- “Negras em Marcha”, Luana Hansen
Vozes transcendentes é o compartilhamento dos desafios e dilemas que pessoas que não tinham outra opção, a não ser enfrentar a crueza dos preconceitos, fobias, violência simbólicas e físicas, para que pudessem ser elas mesmas. Traz de maneira poética a potência do Feminismo Interseccional, da importância de darmos visibilidade para todas as opressões e de como a intersecções dessas opressões podem tornar pessoas mais vulnerabilizadas do que outras. É sobre transição, sobre movimento, sobre superação e (re)existência. É um livro para emocionar, para encher o olho de água, para aprender. E a mais bela lição que aprendi, é que a dúvida é o melhor caminho, quando as verdades oprimem.
Simony dos Anjos
Mãe do Bernardo e da Nina. Graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestranda em Educação (USP). Tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade. É feminista cristã, autora do blog Sim Genuflexos, colunista do Justificando da Carta Capital e integrante do coletivo Evangélicas pela Igualdade de Gênero.
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