Toque, toque, toque, toque, toque, toque. É o barulho dos passos dela que caminha de um lado a outro no vazio da sala. Passos inquietos. O som dos saltos dos sapatos no chão feito de taco de madeira carvalho se ouve a distância e em casa cada cômodo da casa. É ela, Makeba, nome dado pela bisavó, por achar que soava bonito e que de alguma forma trazia as lembranças de um lugar distante. Ela pensa e dispensa aquilo que vai e vem em sua memória, é quase uma luta corporal, entre mente, corpo e memória de menina, agora mulher. Lembranças que despertaram em seu peito um gosto cálido, doce e amargo da saudade de tudo que vivera. A infância. Já faz tempo, pensa Makeba, como tais lembranças ainda podem causar redemoinhos dentro de si? Respostas, ela não tem, mas sabe que a incomodam e fazem com que ande mais rápido e ressoando pela casa o barulho dos sapatos batendo no chão. Makeba sente um fio fino e gelado escapar e escorrer por seu rosto, mas se recusa tocar, pode trazer mais sentimentos. E no vãmente espantada se pergunta como pode lembranças de criança ainda fazê-la chorar. Justo naquele momento, que iria sair para um encontro que já estava marcado há dias? Justo naquela hora, que estava indo ao encontro de si, mas, por outra estrada? Sentiu raiva, chorou respirou e depois riu de tudo, riu do tempo e riu de si e viu que nada estava sob controle. A batalha interna de seu corpo contra as memórias e os sentimentos que elas provocavam já a deixava exausta. Sentou um pouco e respirou, viu que estava à frente do espelho, fitou-o com olhos firmes e novamente se pôs de pé. Falando consigo, falando com seu reflexo no espelho: você já é adulta e não pode voltar a ser criança. Volta a se movimentar, respira, gesticula, respira. Para novamente na frente do espelho e, como para se afirmar da idade que tem, vê apenas alguns fios brancos na cabeça escondido entre outros, esses são os únicos sinais que lhe fazem perceber que o tempo passou, que dera um salto na história.
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Makeba dá um sorriso rasgado para o velho amigo -- um espelho grande que se encontra na entrada da casa entre a sala e o corredor -- e, apesar da idade, percebe que está sozinha, ou ela e o velho amigo. Onde foram parar os homens que a amou um dia, pergunta a mulher menina? Mas, o espelho não é capaz de responder, apenas sorri de volta. Makeba vê no riso do velho amigo o retrato de sua infância, ele a captura e a leva de volta ao mundo que ela mesma tem medo e não consegue acessar. Sentou em sua poltrona vermelha cor de sangue vivo e pôs-se a folhear um livro de capa também vermelha, e a cada momento sentia-se mais atraída pela história de infância, memórias, lembranças, que logo nas primeiras linhas dizia: “(...) jogar fora as bonecas de sabugo (...)”, o que lhe desencadeia um mundo subterrâneo de memórias e emoções não reveladas antes. E pensa: minhas bonecas de sabugo de milho. Makeba se desloca para as lembranças do passado no momento presente, pensa: minhas bonecas. Nesse momento, ela se entrega ao seu ser criança e revivendo suas lembranças, chupando dedo, com uma trança grossa de cada lado da cabeça, um vestido de bolinha preta feito por sua mãe. Makeba se entrega nas fantasias de outrora, segurando a saia de sua mãe com uma mão e, na outra, uma boneca feita da espiga do sabugo do milho. Lembra ela de tantas bonecas, das suas e das amigas que viviam na colônia. Pela escassez de recursos das famílias que ali viviam, a criatividade e a imaginação das crianças não faltavam. Tudo era ligado à terra, ao tempo, pensava ela. As crianças não viam a hora da plantação e da colheita do milho, pois, além de alimento saboroso, servia também para fornecer bonecas de vários tamanhos e coloração de cabelos, quando entrava no tempo de maturação. Para Makeba e sua turminha, não havia coisa melhor, passavam o dia todo entre o milharal, sapecadas pelas folhas, na busca da melhor boneca, em suas variedades de cores de cabelos, pretos, loiros, vermelhos, verdes. Sorriam felizes até ouvirem os gritos das mães pedindo que não estragassem as plantações. Makeba ria de suas lembranças, e viu também que a hora de sair já havia esgotado, e desistiu do tal passeio, do tal encontro, preferia sua companhia e de suas mais novas memórias de infância. Quando não havia mais milho, sua mãe preparava as bonecas de sabugo, já seco após aproveitar os grãos das espigas. Entre uma estação e outra, em especial no inverno, a mãe de Makeba fazia as bonecas de pano, assim como as de milho, não eram duradouras. Todas elas tinham um tempo limite de existência, um dia ou uma noite, assim, não criava-se vínculo. As estações, as plantações, as colheitas e as bonecas, tudo tinha um ciclo. Makeba amava as bonecas de pano que sua mãe fazia. Era um ritual, uma criação formidável aos olhos da criança, agora mulher, mas suas lembranças eram tão vivas que atravessava os tempos. Uma noite Makeba ficou olhando sua mãe fazer nascer sua boneca, e ela, com um dedo na boca, chupando-o como se estivesse amamentando na teta abundante de sua mãe, encostada à beira do fogão de lenha para se aquecer. Viu a mãe com uma trouxa de panos, grandes, pequenos, lisos e coloridos, esperava a chegada de sua boneca de pano.
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Marli Aguiar com sua mãe |
A menina olhava com ternura os movimentos das mãos da mãe e o balançar de sua saia, que às vezes, com os movimentos rápidos que fazia, soprava a brasa do fogão para atiçar o fogo. Makeba, com o dedo na boca e puxando suas tranças, observava a mãe em seu exercício na construção daquele objeto tão desejado, ambas em silêncio, só ação, sentidos e movimentos. Era a cena mais singela, mais profunda e íntima, da expressão de amor entre mãe e filha. Pensava Makeba, nas histórias que sua bisavó contava, sobre a travessia do Atlântico, onde mães faziam bonecas de pedaços de suas poucas vestimentas para as crianças e homens, para esquecerem a dor e a angústia do momento e para não morrerem de banzo. Esse momento era de conexão, quando ainda ela não compreendia todos os fatos. De vez em quando, a mãe de Makeba esboçava-lhe um sorriso, um carinho na cabeça da filha, e a menina lhe retribuía com outro sorriso, isso acontecia até finalizar a obra. Makeba se punha inquieta, com o passar do tempo para receber logo o presente, o amor, o carinho de mãe através da boneca de pano feita de vários tecidos. Ali, era expressão de amor e de delicadeza. Quando a menina recebeu nos braços aquele afeto em forma de boneca, um brinquedo, que não era qualquer brinquedo, os olhos brilhavam – agora, não sabia se era riso ou lágrimas, pois, o passado e o presente se fundem. A mãe entrega o brinquedo carregado de amor e fantasia e dá um tapinha no bumbum de Makeba e esta sai correndo para o quarto para mostrar a suas irmãs maiores e desfrutar de tudo aquilo junto com elas. Tempos depois, se viam dormindo agarradas, Makeba, a boneca e a mãe, e interpunham entre elas o calor, o amor e o afeto. Estas eram as lembranças de que Makeba menina mulher tinha medo: do calor, do amor e do afeto... do colo de mãe.
Marli Aguiar
Graduanda em Letras pela Universidade Federal de São Paulo, militante da luta antirracista, feminista, participante ativa da Marcha Mundial das Mulheres e do Coletivo Conversa de Negra na Cidade de São Paulo. Publicou o livro de contos autobiográfico Tecendo memórias e histórias, que teve cada exemplar encadernado pelas mãos da própria autora com a ajuda de uma rede de mulheres.
Fazendo caminhos, siga!
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